terça-feira, 15 de setembro de 2009

Venezuela e a nova Lei orgânica de Educação

Texto de Valdenésio Aduci Mendes - Brasil de Fato
Na madrugada do último dia 14, a Assembleia Nacional aprovou em segunda discussãoa nova Lei Orgânica de Educação. Já no sábado dia 15, o Presidente Chávez assinava apromulgação da nova Lei em programa televisivo, a qual vem sendo debatida desde 2001, data em que o projeto de lei foi apresentado na Assembleia Nacional. O mandatário qualificou a nova Lei como uma ferramenta que "abre caminho à educação libertadora" e à "criação da mulher nova, do homem novo, da sociedade socialista". Dita Lei vem substituir a Lei de Educação que vigorava há quase trinta anos, aprovada em 1980.Tão logo é aprovada a nova Lei, a oposição ao Governo Chávez, sobretudo na figura de prefeitos e governadores, se manifesta no dia seguinte, dia 16, conclamando um referendum contra a nova Lei recém aprovada. A oposição à Lei promulgada também parte de muitos setores da sociedade, dentre eles, a Igreja Católica, representantes de universidades, pais, escolas privadas e estudantes, que a qualificam de “ideologizante” e “excludente”. Na perspectiva do cardeal Jorge Urosa, membro da Igreja Católica venezuelana, o Estado teria expulsado Deus da escola, já que a nova Lei elimina a cátedra de formação religiosa das escolas do país. Por outro lado, setores da comunidade acadêmica se debatiam em torno do desaparecimento da “autonomia” universitária, e muitos meios de comunicação alardeavam que os pais “perderiam o pátrio poder” (“com meus filhos não se metam”).Muitos, ainda, se contrapõem à ideia de um “Estado docente”, já que não restaria senão a homogenização do pensamento apregoado pelo socialismo do século XXI, ao passo que outros dizemque não seriam as luzes, mas a obscuridade que se anunciava no fim do túnel da educação na Venezuela.
Estas manifestações e expressões advindas de muitos setores da sociedade corresponderiam de fato às intenções do corpo da lei recém aprovada, ou ao contrário seria mais uma demonstração do profundo antagonismo de classes vigente na Venezuela, o qual estaria promovendo uma incapacidade de entender projetos de interesse comum por parte de setores ultra conservadores da sociedade?Se as disposições fundamentais de uma lei tem a pretensão de apresentar o escopo filosófico de tais normativas, vejamos o que dizem os princípios e valores dos artigos 3 e 5 da Lei Orgânica de Educação venezuelana. Os princípios e valores retores da educação que regem a Lei são: vida, amor, democracia participativa y protagónica, convivencia, libertad, emancipación, igualdad, equidad, independencia, soberanía, paz, solidaridad, cooperación, bien común, justicia social, gratuidad, obligatoriedad, equidad de género, integralidad, identidad, diversidad, laicidad, carácter público, intercultural, pluricultural, multiétnica, plurilingüe, permanente, sin discriminació n, valoración ética del trabajo, inclusión, honestidad, pertinencia, creativa, innovadora, crítica y ecologista.
O artigo 4º de dita Lei afirma que:El Estado Docente es la expresión rectora del Estado venezolano en la educación en cumplimiento de su función indeclinable y de máximo interés, que se materializa en las políticas que rigen a la educación como derecho humano universal y deber social fundamental, inalienable, irrenunciable, y como bien público. El Estado Docente se rige por los principios de cooperación, solidaridad, concurrencia y corresponsabilidad. En las instituciones educativas oficiales el Estado garantizará la calidad del talento humano; la infraestructura, la dotación, los planes, programas, proyectos, actividades y los servicios que le aseguren a todos y todas igualdad de condiciones y oportunidades y la promoción de la participación protagónica de las familias, la comunidad educativa y las organizaciones comunitarias, de acuerdo a los principios que rigen la presente Ley. El Estado velará porque estas condiciones se cumplan en las instituciones privadas autorizadas.Os princípios e valores do artigo 3º praticamente re-editam os valores fundamentais da Constituição de 1999, mas já anunciam in nuce sua pretensão de extrapolar a Lei orgânica de educação de 1980. As ideias motrizes de democracia participativa, bem comum, laicidade, não discriminação e Estado docente, contidas no artigo 3º e 4º, sem dúvida alguma, são as ideias que irão promover e suscitar resistências na sociedade venezuelana, tal como anunciado inicialmente. Quanto aos artigos 5º e 6º que tratam do Estado Docente e suas competências, visam prevenir a educação dos possíveis danos que a privatização possa provocar em suas estruturas. Por outro lado, aqui fica demonstrado que os argumentos de vários setores representantes de instituições de ensino privado carece de fundamento, já que o Estado assegura a todas as instituições privadas devidamente autorizadas, todos os princípios que valem para as instituições públicas. Para além dos artigos citados, a oposição ao governo de Chávez lança suas críticas a artigos mais específicos da nova Lei Orgânica, a saber, os artigos 7º que afirma que:
El Estado mantendrá en toda circunstancia su carácter laico en materia educativa, preservando su independencia respecto a todas las corrientes y organismos religiosos. Las familias tienen el derecho y la responsabilidad de la educación religiosa de sus hijos e hijas de acuerdo a sus convicciones y de conformidad con la libertad religiosay de culto, prevista constitucionalmente .Tão logo o Estado venezuelano reivindica a laicidade no âmbito educativo, não tardou muito para que a Igreja Católica reagisse, fazendo uma leitura do artigo supracitado no sentido de que o Estado teria expulsado Deus das salas de aula. Na realidade, é algo incompreensível que esta instituição tenha reagido dessa forma, sobretudo por dois motivos: primeiramente porque a ideia de uma educação laica é uma ideia antiga, que existe desde a Revolução Francesa; e em segundo lugar (e ontraditoriamente) , a Igreja Católica foi a única instituição religiosa que conseguiu manter-se hegemônica no campo do ensino religioso nas instituições escolares da sociedade venezuelana. Ou seja, parece que durante quarenta anos de vigência da IV República, o princípio democrático não havia adentrado as paredes da Igreja, já que reinava absoluta na formação da consciência religiosa de crianças e adolescentes. Onde se situava a cosmovisão religiosa das multiculturas indígenas e dos afrodescendentes? Existia nas várias manifestações culturais do país, mas permaneceu alijada do processo de formação nacional durante décadas.Para que haja coerência com os princípios democráticos da constituição da V República, ou se reconhece todas as manifestações religiosas e se dá a possibilidade de que todas tenham a possibilidade se expressarem na esfera da educação fornecida pelo Estado, ou então não se dá a possibilidade de nenhuma das manifestações citadas se tornem dominantes no campo educativo relgioso. Parece que o Estado deu uma solução justa ao tema, transferindo para o seio familiar e comunitário o direito de educar seus membros, segundo princípios religiosos, com base na liberdade culto, assegurada na Constituição Bolivariana. Segundo o artigo 17º da Lei Orgânica, além da família, também o Estado, a sociedade e a escola compõem o grupo de agentes da educação e são corresponsáveis no processo de formação cidadã e desenvolvimento de seus membros.O artigo 17º por si só demonstra o quão distante está da ideia difundida por vários setores e meios de comunicação, de que se extinguiria o pátrio poder tão logo se promulgasse a nova lei de educação; de que, de repente, os pais e representantes se veriam distantes de seus filhos. Seria esta uma re-edição da república platônica em pleno século XXI? Penso que não, seria apenas uma forma de fazer terror midiático e caricaturas com ideários socialistas difundidos na Venezuela atual. Na realidade, esta desinformação foi divulgada por um locutor venezuelano em uma emissora, que dizia que na Venezuela se implantaria outra versão do Plano Peter Pan, que procurou desestabilizar o governo cubano. Por sua vez, o Ministro da Educação esclareceu que a nova Lei não toca no tema do pátrio poder porque este é um assunto que está definido na LONA: Lei de proteção à crianças e Adolescentes.Sem dúvida alguma que o tema da laicidade da educação tem provocado muita polêmica, mas o mais controverso dos artigos que parece prometer muita discussão ainda, é o artigo 34º que trata da autonomia nas instituições de ensino superior, o qual estabelece que:En aquellas instituciones de educación universitaria que les sea aplicable, el principio de autonomía reconocido por el Estado, se materializa mediante el ejercicio de la libertad intelectual, la actividad teórica, la investigación científica, humanística y tecnológica, con el fin de crear y desarrollar el conocimiento y los valores culturales. La autonomía se ejercerá mediante las siguientes funciones:1. Establecer sus estructuras de carácter flexible, democrático, participativo y eficiente, para dictar sus normas de gobierno y sus reglas internas, de acuerdo a lo establecido en la Constitución y la ley.2. Planificar, crear, organizar y realizar los programas de formación, creación intelectual e interacción con las comunidades, en atención a las áreas estratégicas de acuerdo al Plan de Desarrollo Económico y Social de la Nación, las potencialidades existentes en el país, a las necesidades prioritarias, al logro de la soberanía científica y tecnológica y al pleno desarrollo de los seres humanos.3. Elegir y nombrar sus autoridades con base en la democracia participativa, protagónica y de mandato revocable, para el ejercicio pleno y en igualdad de condiciones de los derechos políticos de las y los integrantes de la comunidad universitaria: profesoras, profesores, estudiantes, personal administrativo, obreras, obreros egresadas y egresados. Se elegirá un consejo contralor conformado por las y los integrantes de la comunidad universitaria.4. Administrar su patrimonio con austeridad, justa distribución, transparencia, honestidad y rendición de cuentas, bajo el control y vigilancia interna por parte del Consejo Contralor, y externa por parte del Estado. El principio de autonomía se ejercerá respetando los derechos consagrados a los ciudadanos y ciudadanas en la Constitución de la República Bolivariana de Venezuela, sin menoscabo de lo que establezca la ley en lo relativo al control y vigilancia del Estado, para garantizar el uso eficiente del patrimonio de las instituciones del Subsistema de Educación Universitaria. Es responsabilidad de todos los integrantes del Subsistema la rendición de cuentas periódicas al Estado y a la sociedad, sobre el uso de los recursos, así como la oportuna información en torno a la cuantía, pertinencia y calidad de los productos de sus labores.A análise minuciosa deste artigo ultrapassaria em muito o objetivo destas reflexões e nos remeteria a um artigo sobre a instituição universitária. Por isso, destaco a questão do processo participativo nas tomadas de decisões universitárias como o problema central deste artigo da nova Lei.O que é, e o que tem significado autonomia, afinal? Podemos estender esta interrogante ao contexto das instituições universitárias latino-americanas, inclusive, brasileiras, embora nossa análise esteja voltada para o contexto venezuelano. A autonomia tem significado o aborto da participação de uma ampla maioria de seus membros nas decisões políticas acadêmicas.O ponto 3 do artigo 34º da nova Lei Orgânica de Educação na Venezuela, tal como visto acima, se opõe claramente ao elitismo acadêmico, o qual tem sido refratário em reconhecer a igualdade política de vários setores na escolha de suas autoridades. Fica estabelecida a igualdade de condições dos direitos políticos dos integrantes de toda a comunidade universitária: professores( as), estudantes, pessoal administrativo, obreiros(as) , ingressados( as). Ademais, fica estabelecido a criação de um Conselho Controlador, conformado pelos integrantes da comunidade universitária. De igual maneira tais instituições deverão prestar contas do uso do patrimônio, que antes não o faziam, e estarão obrigados a prestar contas ao Estado Venezuelano. Atualmente as universidades do país não prestam contas nem à comunidade universitária nem ao Estado, o que tem dado margem a malversação de recursos públicos, difíceis de conhecer. Também fica estabelecida a transparência do processo que diz respeito ao ingresso dos alunos e de professores nestas instituições, procurando evitar, dessa forma, o uso político desse direito fundamental. O artigo 36 estabelece que:El ejercicio de la formación, creación intelectual e interacción con las comunidades, y toda otra actividad relacionada con el saber en el Subsistema de Educación Universitaria, se realizarán bajo el principio de la libertad académica, entendida ésta como el derecho inalienable a crear, exponer o aplicar enfoques metodológicos y perspectivas teóricas, conforme a los principios establecidos en la Constitución y en la ley.O artigo 18 da nova Lei, também foi motivo de forte resistência de parte do setor educativo de ensino básico e médio em toda a Venezuela, já que conclama os conselhos comunais e demais organizações sociais da comunidade, em exercício do Poder Popular e em sua condição de agentes da educação, a contribuir com:a) la formación integral de los ciudadanos y las ciudadanas; b) la formación y fortalecimiento de sus valores éticos;c) la información y divulgación de la realidad histórica, geográfica, cultural, ambiental, conservacionista y socioeconómica de la localidad; d) la integración Familia-Escuela- Comunidad; e) la promoción y defensa de la educación, cultura, deporte, recreación, trabajo, salud, y demás derechos, garantías y deberes de las venezolanas y los venezolanos, ejerciendo un rol pedagógico liberador para la formación de una nueva ciudadanía y construcción de los sujetos sociales de transformació n.Há que esclarecer que os conselhos comunais, hoje em torno de 30 mil em todo o país, constituem a primeira célula do Poder Popular em Venezuela, amparados legalmente desde 2006. Muitos setores do sistema educativo estavam interpretando que perderiam a autoridade nas escolas, na medida em que os conselhos comunais estivessem se imiscuindo em área que não lhes competiria. Na realidade, o artigo conclama a uma relação mais estreita entre escola e comunidade, visando a transformação do entorno social, ecos da pedagogia defendida por Paulo Freire no Brasil e Simón Rodriguez, mestre de Simón Bolívar.
Segundo o calendário do sistema educacional nacional, o ano escolar tem início nos primeiros dias de agosto, o qual culmina em julho do próximo ano, e provavelmente, o movimento de oposição à nova Lei de Educação engrossará na medida em que um expressivo número de professores retome suas atividades. Enquanto isso, os demais setores da sociedade que estão fazendo frente a esta nova lei, já estão compondo uma frente para tramitar o processo de referendum para a derrogação da mesma, nosentido de torná-la sem efeito jurídico. Por outro lado, muitos analistas da área do direito, vem alertando que a Lei Orgânica de Educação (LOE) não poderá ser derrogada (abrogada), tendo em vista que esta lei dispõe de uns artigos (1º, 4º e 14º) que enaltecem e outorgam um grande valor aos direitos humanos, os quais estão afiançados pela Constituição Bolivariana de 1999 (artigo 102º). Em outras palavras, a matéria educativa forma parte dos processos fundamentais e a educação em sentido próprio é um direito inerente ao cidadão para conseguir os objetivos essenciais do Estado. De uma forma ou de outra, o debate seguirá, e só o tempo dirá se a oposição conseguirá recolher dois milhões de assinaturas no país para dar entrada na solicitação de referendum, e claro, depois desse processo, cabe à justiça decidir se a nova Lei Orgânica de Educação é constitucional ou não.

Valdenésio Aduci Mendes Mestre em Ética e Filosofia Política (UFSC) e doutorando em Sociologia Política (UFSC)

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